segunda-feira, 23 de novembro de 2009

A vida continua... mas não será a mesma

Quis usar uma foto mais suave do que a do lance do Henry

Por Sandro Meira Ricci, árbitro de futebol

“A vida continua.” Foi assim que o árbitro sueco, Martin Hansson, respondeu à imprensa sobre o gol de mão da França que tirou a Irlanda da Copa do Mundo de 2010. Sabemos, porém, que a vida de muitas pessoas (inclusive do árbitro) não será mais a mesma depois daquela partida.

Afinal, como um pai que ensina seu filho a ser honesto para vencer na vida explica que a seleção de seu país não irá para Copa do Mundo em razão de uma derrota sofrida com um gol ilegal do adversário? Como esse pai explica ao avô da criança, já idoso, que provavelmente ele não terá mais a oportunidade de ver sua seleção disputar uma Copa do Mundo em razão de um gol ilegal? Como um jogador de renome mundial, idolatrado por inúmeras crianças, se propõe a dar um péssimo exemplo, agindo de modo a alterar o resultado de uma partida, por meio da burla ao texto e ao espírito das regras do futebol?

Desde o momento em que presenciei o gol de mão do atacante francês Thierry Henry, procuro respostas para essas perguntas. A única explicação para que esse tipo de atitude ainda sobreviva no futebol mundial é a busca da vitória a qualquer preço, associada à impunidade na esfera desportiva.

Por mais contraditório que possa parecer, a trapaça de Henry é vergonhosa e ao mesmo tempo “normal”. É impressionante como o futebol, do ponto de vista mercadológico, estimula essa cultura da desonestidade, em que os fins justificam os meios e assim será enquanto não houver punição severa a quem desonra o esporte.

Ao assistir à comemoração da classificação da França, me restou o único conforto de perceber a vergonha do cabisbaixo Henry ao saldar seus súditos franceses e confortar os honrados irlandeses. Mas essa vergonha compensa a decepção da criança, do pai e do avô na Irlanda?

Aliás, depois do gol de Henry, quem não lembrou do gol de mão de Maradona na Copa do Mundo do México em 1986? A Campanha Jogo Limpo (“Fair Play”) da FIFA foi concebida como resultado direto daquela lastimável ausência de espírito esportivo do argentino. A Campanha visa a apresentar os benefícios de jogar conforme as regras, usando o bom senso e respeitando os jogadores, árbitros, adversários e torcedores. Nesse sentido, a Fifa também criou um código de conduta para reforçar o princípio moral e ético de que a vitória só tem valor se for conquistada de maneira limpa, justa e honesta, e estabeleceu uma premiação anual para grupos ou indivíduos que contribuíram largamente para a promoção do fair play no futebol. Em tempo: Henry perdeu uma grande oportunidade!

O fato de o futebol ter se tornado um grande negócio não impede que os agentes do futebol, especialmente suas maiores estrelas que são os jogadores, tenham uma conduta ética e responsável. Afinal, ética é fazer o certo quando se tem algo a perder. Ser digno mesmo na derrota. Observar as regras do jogo. Honrar os efetivos interesses do futebol. Promover a boa reputação do esporte. Enfim, jogar limpo para o bem do esporte (Fair Play for the Good of the Game).

Sandro Meira Ricci é árbitro de futebol, aspirante à Fifa, e atuou em 16 partidas da Séria A do Campeonato Brasileiro deste ano.

Publicado originalmente no jornal Correio Braziliense - 23/11/2009

Nenhum comentário:

Postar um comentário